João Adolfo Guerreiro
JOÃO ADOLFO GUERREIRO | Um ano da cheia de maio de 2024
Coisas e memórias foram submersas pela água

João Adolfo Guerreiro
No dia primeiro de maio do ano passado eu estava num hotel, em Torres, já com pouca esperança de que a chuva que caía em todo o Rio Grande não durasse tanto assim e permitisse, ao menos, o resto da minha família vir a fim de aproveitarmos alguns dias do Festival do Balonismo. Era quarta-feira e estava desde segunda por lá, aproveitando a cidade.
Torres não alagou, tampouco o rio Mampituba transbordou, o que fez, pela situação prática de onde me encontrava, ficar ainda mais alienado quanto a real gravidade do que estava acontecendo, até pelo inédito do que, hoje sabemos, estava se formando. A mesma geração que viveu uma pandemia como a de 1918 estava para experimentar, agora, uma enchente ainda maior do que a de 1941. E isso no espaço de tempo compreendido entre março de 2020 e maio de 2024. Peguei a Zero Hora do hotel, cedo da manhã, e fui tomar o café no refeitório. Apreciava a chuva que caía, sentado na varanda envidraçada, enquanto sorvia o café e tomava pé das notícias, eis que, na praia, não olho TV de propósito, pra ficar de fora do mundo.
O que li e as notícias que os familiares mandavam de Charqueadas pelo Whats App começaram a se encaixar. O que estava acontecendo, ora? Percebi que Torres estava numa bolha, por ser uma cidade litorânea, imune ao efeito da torrente que se despejava sobre o estado. Comecei a ficar realmente preocupado e, assim, permaneci durante o dia, esperando alguma perspectiva melhor referente ao clima. Comecei a acompanhar pela TV e pelo celular notícias e previsões. Foi pelo jornal da noite da RBS TV que a minha ficha caiu: se a água havia chegado até ali em Porto Alegre, poderia perfeitamente tomar a rodoviária, pelo volume de chuvas previsto para os próximos dias. E Charqueadas, como ficaria? Era hora de ir, o mais rápido possível, pra junto da família e da comunidade. Tchau Torres, tchau balonismo.
Na manhã do dia 2, quinta-feira, acertei o hotel, cancelando o restante da reserva, e embarquei no ônibus das dez horas para Capital, mantendo contato com a família e já passando instruções sobre como procederem enquanto eu não chegava. Consegui um Vitória às 13:30h pra Charqueadas. Quando o carro passou pela ponte, pude ver o nível da água e pensei que no dia seguinte a rodoviária e a ponte já estariam inoperantes, o que realmente aconteceu. Foi ali, no limite, que passei, um pouco mais e teria de ficar não sei quantas semanas em Torres. Naquele momento possuía convicção plena de que algo inédito estava acontecendo, ou seja, não sabia mais a que ponto tudo isso poderia chegar, pelo inédito da situação.
Chequei na cidade e fui direto pra casa. A primeira coisa que fiz foi descer a rua Distrito Federal até o rio, pra ver como estavam as coisas. A rua próxima da margem já estava tomada, mas as casas ainda não haviam sido totalmente cobertas, estavam pela metade. A água chegaria bem mais longe, ainda, impossível imaginar que taparia tudo ali, tomaria o antigo hotel e depois a casa do Caquinho, esquina após esquina, até o teto (imagem abaixo). Mas tapou. A água chegou a 11 metros e 32 centímetros acima do nível, enquanto minha casa está situada a 15. Quase chegou até a Salvador Leão. Se ali chegasse, tomaria o Centro até a prefeitura, que está a 13. Não chegou, felizmente. Entretanto, o tremendo estrago que faria na cidade, dos bairros São Miguel e Cohab até o Passo da Cruz (Lindos Aires), foi gigantesco. Recordo de quando fui na ERS 401 ver o caminho pra São Jerônimo e deparei com o Passo da Cruz tomado pela água (imagem acima), com lanchas realizando a travessia para o outro lado da faixa. Senti um grande estranhamento, uma sensação de irrealidade ou surrealidade, como se estivesse em outra cidade e aquele fosse um rio que sempre estivera ali. Impossível acreditar que a ERS e a vila estivessem completamente submersas. As pessoas perderam tudo, coisas e memórias, por todo o lugar onde a água chegou na cidade.
Charqueadas toda estava numa situação de guerra, como se acontecesse uma retirada forçada dos cidadãos frente a chegada do invasor. Testemunhei, estupefato, isso. Caminhões com móveis por todo o lado, numa gigantesca rede de solidariedade por parte da população, que se estenderia pelos dias seguintes. Depois ainda veria, dias mais tarde, os gigantescos helicópteros da Marinha e do Exército pousarem no campo do Baratão, com mantimentos. Inacreditável, mas, infelizmente, aconteceu. Só voltei a escrever pro Portal na quarta-feira seguinte, dia 8, com uma crônica intitulada E o sol voltou a brilhar no domingo, quando a água já começara a baixar, estando naquele momento a 9,54 metros.
Em alguns dias das próximas duas semanas, reproduzirei textos que fiz durante o período.
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